domingo, 3 de março de 2013

Corações Gelados, Laurie Halse Anderson [Opinião]





Título Original: Wintergirls
Autoria: Laurie Halse Anderson
Editora: ASA
Nº. Páginas: 227
Tradução: Susana Serrão


Sinopse:

«Eu sou aquela rapariga.
Eu sou o espaço entre as minhas coxas, a luz do sol a derramar-se entre elas.
Eu sou a auxiliar de biblioteca que se esconde na "Fantasia".
Eu sou a aberração de circo enclausurada em cera.
Eu sou os ossos que eles querem, ligados num molde de porcelana.»

Viajei na terra dos Corações Gelados devido às inúmeras leitoras que me escreveram a contar a sua luta com distúrbios alimentares, automutilação e sensação de andarem perdidas. A sua coragem e sinceridade puseram-me no caminho para encontrar Lia e ajudaram-me a compreender a sua devastação. Embora não seja uma história da vida real, Lia foi inspirada nessas leituras, e por isso lhes estou muito grata. 


Opinião:

Faz tempo desde a última vez em que me senti assim relativamente a um livro. E verdade seja dita, não me passou, sequer, pela cabeça que uma história como esta tivesse a capacidade de me reduzir a meras cinzas, a lágrimas contidas, a um desespero revoltante e a pequenos e ínfimos pedaços de mim mesma. Esta é uma obra poderosa que retrata uma cavernosa vida em palavras; é uma personagem principal arrebatadora que facilmente poderia ser a nossa melhor amiga, uma filha ou uma irmã, uma prima. E é precisamente esse sentido de realidade próxima, de autenticidade forte, que leva este romance a um completo e renovado nível de emoções e angústias. Ele não é unicamente bom, nem fantástico. É uma obra que salvou – e que continuará a salvar – vidas. É uma bíblia. Uma fabulosa história ficcional que poderia retratar a nossa própria vida. Sem dúvida, um dos melhores livros que li até hoje... mesmo não tendo gostado assim tanto de Grita – o que é dizer muito para qualquer fã de Laurie Halse Anderson.
E essa acabou por ser uma das razões iniciais que me deixou algo renitente em pegar neste Corações Gelados. Talvez porque o achei demasiado rápido, talvez pelo seu estilo de escrita não me ter cativado por aí além, a verdade é que não sei, mas, para mim, houve – e ainda há – qualquer coisa que está em falta em Grita. E precisamente por isso, estava receosa em encontrar o mesmo tipo de enredo, de escrita, de personagem neste novo romance. Mas como estava enganada. Tão, tão enganada.

Se tivesse de descrever este livro, diria que é inacreditavelmente cru e tão intensamente cruel, mas da forma mais bela e comovente possível. A escrita é assombrosamente lírica e Lia... Lia é uma rapariga com tantos problemas, enclausurada num corpo que não deseja, numa mente que a tormenta, que tudo o que faz, tudo o que pensa ou imagina é expressado de forma tão extenuante e esmagadora que o próprio leitor, rapidamente incapaz de encontrar forças para a encorajar, para a apoiar, só ambiciona poder ajudá-la a abrir os olhos para a realidade que a vida é, ao invés de a permitir continuar a contar calorias e a medir quão maciças são as suas coxas e anca.
A voz de Lia é intoxicante! Tantas vezes me senti dormente face a ela, desprovida de todas as emoções e sensações, mas sempre atenta aos seus desejos, aos seus objectivos, ao mesmo tempo que me via tão imensamente atraída para a sua mente, para os seus pensamentos e personalidade contrita. Acredito que Lia era, somente, uma rapariga assustada, repleta de medo. Medo de acabar como a Cassie e de desiludir todos aqueles que acreditava não quererem saber dela. Medo de falhar a sua promessa, de ir contra a sua própria e doentia vontade. Medo de sofrer, de se magoar, de sentir toda aquela avassaladora dor emocional e, por isso, em vez de abraçar o bom e o mau, focou-se exclusivamente em tornar-se a mais magra, em fornecer o mínimo e indispensável de vida ao seu corpo de modo a que nada mais tivesse importância e que a sua mente continuasse frágil o suficiente para se proteger de qualquer tipo de amargura. Acredito que a morte de Cassie foi o final da linha, para Lia, a bala na arma que mantinha próxima da cabeça desde o momento em que a conhecera, em que se conhecera a si mesma – e isso é tão maravilhosamente perturbador.

Esta não é uma leitura fácil. Na verdade, trata-se de um livro que é tudo menos fácil, confortável ou simples, tanto que por diversas vezes tive de o pousar para pode respirar fundo, acalmar-me e voltar a concentrar a mente. É, realmente, uma leitura que afecta, que mói, que impressiona. E sei o quanto me foi difícil manter estável, não exprimir o quão revoltada me ia sentido com Lia e a sua família – principalmente com o seu pai, que poderia se importar mais, fazer mais – mas também me esforçava por recordar que a realidade é assim mesmo. As pessoas encontram-se demasiado cegas e centradas em si mesmas e nos seus problemas, pelo que este tipo de lutas, de doenças são muitas vezes confundidas com aborrecimentos na escola ou com um rapaz, ou ainda como sendo frutos de um mau dia – quando são tão mais que isso.
Acredito amplamente que gostei tanto de Corações Gelados precisamente por ser uma leitura difícil sobre uma história extremamente dura. Pois se tudo fosse simples e se Lia, sofrendo de anorexia e automutilação, fosse representada ainda assim como uma rapariga feliz e popular, com certeza que este livro não teria o mesmo impacto que ao retratá-la como tantas raparigas o são na vida real. E espero sinceramente, do fundo do coração, que todas essas raparigas pelo mundo fora que actualmente se encontram a lutar contra a doença ou que ainda sofrem em agonia pelo pensamento de que não comer é a solução, descubram neste romance, nesta história, a força e a coragem necessárias para ultrapassar todos os obstáculos e dificuldades. E lembrem-se de que não estão sozinhas. Lembrem-se de que são fortes. E sejam mais. Desejam ser muito mais que uma mera concha vazia.

«As minhas mãos leem um mapa em braille feito de osso, a começar pelos seios vazios crivados de veias azuis como rios engrossados pelo gelo. Conto as costelas como contas de um terço, a murmurar encantamentos, os dedos enrolados na caixa ossuda. Quase podem tocar no que se esconde lá dentro.», pág. 182

«Sou um fracasso a comer, sou um fracasso a beber, sou um fracasso a não me cortar em bocadinhos. Sou um fracasso na amizade. Sou um fracasso em amor fraterno e amor filial. Sou um fracasso ao espelho e na balança e ao telefone. Ainda bem que estou estável.», pág. 187

2 comentários:

p7 disse...

Uau, estou surpreendida com a boa impressão que este te deitou, especialmente depois do Grita (com o qual também tive dificuldades). Só por isso, sinto que vale a pena dar-lhe uma oportunidade. :D

Pedacinho Literário disse...

Estás tu... e estou eu! =O Acho que não tem nada a ver com o Grita, o que o Grita tinha a menos, este tem na quantidade certa. Dá-lhe uma oportunidade! xD

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