segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A Mecânica do Coração, Mathias Malzieu [Opinião]




Título Original: La Mécanique du coeur
Autoria: Mathias Malzieu
Editora: Contraponto
Nº. Páginas: 143
Tradução: Irene Daun e Lorena & Nuno Daun e Lorena


Sinopse:

Edimburgo, 1874. Jack nasce no dia mais frio de sempre, com o coração… congelado. A Dr.ª Madeleine, a parteira (segundo alguns, uma bruxa) que o trouxe ao mundo, consegue salvar-lhe a vida instalando um mecanismo – um relógio de madeira – no seu peito, para ajudar o coração a funcionar. A prótese resulta e Jack sobrevive, mas com uma contrapartida: terá sempre de se proteger de sobrecargas emocionais. Nada de raiva e, sobretudo, nada de amor. A Dr.ª Madeleine, que o adopta e zela pelo seu mecanismo, avisa: «O amor é perigoso para o teu coraçãozinho.» Mas não há mecânica capaz de fazer frente à vida e, um dia, uma pequena cantora de rua arrebata o coração – o mecânico e o verdadeiro – de Jack. Disposto a tudo para a conquistar, Jack parte numa peregrinação sentimental até à Andaluzia, a terra natal da sua amada, onde encontrará as delícias do amor... e a sua crueldade.


Opinião:

Existe um sentimento sombrio, inebriante e absolutamente único, que resiste a tudo para lá do tempo e do espaço, ao qual nem o mais frágil, o mais cuidado e protegido dos corações consegue sobreviver. Um sentimento que se entranha, que cria raízes no mais fundo do nosso ser. Um sentimento impossível de extinguir, de acalmar, de combater. Um sentimento que, uma vez ganho, para sempre ficará connosco, nos nossos pequenos ovos de recordações, nos nossos tiquetaques de existência, nos nossos... corações embelezados pelos mais ricos, os mais efémeros e invulgares relógios de cuco.

A Mecânica do Coração é bem capaz de ser o «conto» mais brilhante e, ao mesmo tempo, inquietante que tive o prazer de ler. Sobre um amor que fugiu por entre os dedos, sobre uma familiaridade escondida por trás de uma mentira protegedora, sobre amizades peculiares que subsistiram ao longo do tempo, e sobre uma demanda, uma viagem e uma aventura, em busca do bem mais precioso e mais bem preservado do mundo, esta é uma narrativa singular que, mais cedo ou mais tarde, mais ao início ou mais a caminho do fim, atingirá o leitor com uma força e um estrondo tão espectacular, tão gigantesco que nada o poderá alguma vez preparar para o misto de sentimentos e reflexões que daí advirão.
Mathias Malzieu possui uma escrita muito própria, com um tom único e encantatório, até algo melancólico. Nas suas palavras estão presentes as mais variadas emoções e, com o avançar da trama, todos esses vislumbres de sensações são transmitidos ao leitor, ao ponto de este se deixar embalar por completo na melodia narrativa que esta história com laivos de conto frui.

Um pouco confuso e estranho ao início, até ligeiramente apressado, este é um enredo que, com o fluir das páginas, vai cativando e emocionando. E embora as personagens que povoam esta fábula sem igual não sejam desenvolvidas ao seu máximo, compreendidas em toda a sua magnitude, muito é mostrado e ainda mais é deixado para ponderação, para posterior reflexão por parte do leitor.
Little Jack, por sua vez, é o instrumento que não cessa de tocar, o coração que insiste em pulsar, a lágrima rebelde que corre livremente por um rosto inexpressivo. Sendo a figura deste romance, este Homem Sem Efeitos Especiais é aquele que persegue um amor impossível com quem somente trocou uns tantos versos e um curto olhar. Mas esse amor, essa impossibilidade de alcançar, esse sonho que não desaparece, é o alento que Jack secretamente guarda no pensamento e pelo qual será capaz de lutar, de procurar até ao fim do universo.

Também Miss Acácia e Madeleine são intervenientes de peso, cada uma à sua maneira. Enquanto a primeira é os olhos que não querem ver, a realidade que prefere distorcer mas o afecto que guarda para aquele que verdadeiramente ama, a segunda é a mãe que nunca foi mas sempre quis ser, a feiticeira que cura, a mulher que ajuda sem nada pedir em troca, a não ser a recusa perante a muito provável fatalidade de um coração precário.
Os cenários são outro aspecto importante e delicioso. Desde a transmutável cidade de Edimburgo que viu nasceu, no dia mais frio de sempre, o rapaz que, no lugar de um coração humano, exibe um relógio de madeira, à localidade que esconde um circo Extraordinarium, enriquecido por uma série de atracções femininas e assustadoras, todos os locais são fruto de pequenos pormenores importantes mas estes dois, em particular, são o palco dos melhores e dos piores momentos na vida de Jack.

Ainda que A Mecânica do Coração seja uma história fabulada, as mensagens que transmite, que conserva, são impagáveis. Recordo-me de pensar, ao ler este livro, num ditado muito popular que diz: «Quem espera, sempre alcança.», e no caso de Jack, a esperança e a vontade de conseguir algo que deseja tão ardentemente conferiu-lhe toda uma vida de alegrias e desilusões, mas todos eles sentimentos, situações que nunca esquecerá. Acima de tudo, este é um livro que ensina a não desistir do amor, dos sonhos. Ensina a não matar a esperança, mesmo quando o que nos torna únicos e especiais e diferentes é motivo de chacota e receio por parte de outros. Essencialmente, trata-se de uma alegoria que, de uma forma bela e poética, mostra que, por vezes, o facto de tomarmos riscos, de não olharmos para trás, de, simplesmente, nos atirarmos precipício fora, pode trazer uma imensidão de benesses e de desejos concretizados. Ou seja, diz-nos para nunca desistirmos de sonhar.

Quanto a mim, está bastante claro que esta foi uma leitura que me agradou sobremaneira, e ainda que inicialmente me tenha sentido algo perdida num enorme lago de descrições temporais breves e de uma prosa etérea, no final, todo o desespero e toda a não compreensão iniciais compensou. Penso que, principalmente, este é um romance que exige uma mente aberta e uma atenção muito particular por parte do leitor, além de um coração forte.
Uma excelente aposta por parte da Contraponto que, com publicações destas, marca totalmente a diferença. Interessante, belo e singular, aconselho vivamente.

4 comentários:

Cláudia S. Reis disse...

Já tive o prazer de ler este livro há uns anos e é com grande orgulho que o tenho nas minhas prateleiras. Simplesmente brilhante.

p7 disse...

Parece tão fofinho e bonito... :D A tradução/revisão estava boa?

Pedacinho Literário disse...

É mesmo muito, muito fofinho. *.* Tenho ideia que sim, que vale a pena adquirir a versão portuguesa. Confesso que não prestei muita atenção neste, eheheheh. =)

Pedacinho Literário disse...

Também gostei muito, Emilie. Houve um ou outro momento/aspecto que não me agradou por completo, mas no geral é um livro bastante interessante. =)

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