Lia Habel estreou-se em Portugal (e também no resto do mundo) com Eterna Saudade (Dearly, Departed), um romance inovador que conjuga zombies, tecnologia e os costumes da era Vitoriana num enredo vibrante, auxiliado por personagens incrivelmente reais – na sua ficção e condições reduzidas –, e um estilo de escrita muito próprio e moderno. Licenciada em Literatura e Mestre em Estudos de Museu, Lia Habel sempre viu a escrita como uma forma de vaguear por outros mundos e o que começou como uma brincadeira entre amigos, acabou por se transformar numa obra publicada e bem aclamada pela crítica. Segue-se Dearly, Beloved, com edição prevista ainda para este ano, nos Estados Unidos da América, que conta a forma como a sociedade se irá adaptar – ou não – ao cada vez mais intenso fluxo de mortos vivos a par com tantas outras surpresas.
O Pedacinho teve o prazer de fazer uma entrevista à autora, de modo a saber um pouco mais sobre si e sobre a sua escrita. Aqui fica ela, traduzida. Espero que gostem.
Quem é Lia Habel? Conta-nos algo sobre ti.
Tenho tendência para me ver como alguém pouco interessante, por isso esta pergunta é sempre difícil de responder! Tenho 29 anos e nasci numa zona rural do estado de Nova Iorque (onde continuo a viver), nos Estados Unidos da América, perto do Canadá. Imagina montanhas, florestas densas, lagos, muita neve durante o inverno e uma abundante vida selvagem. Vejo, com frequência, veados e perus selvagens quando vou caminhar, mesmo em áreas suburbanas! Aquando pequena, fui, praticamente, uma nerd em fase de treino – o meu pai adorava tecnologia pelo que recebia sempre os últimos e mais recentes modelos de brinquedos, e a minha mãe era uma grande fã de livros e filmes de terror e ficção científica, o que fez com que lhe fosse buscar esta paixão que tenho (assim como o seu sentido de humor “negro”). Sou licenciada em Literatura Inglesa e tenho um mestrado em Estudos de Museu – prova do quanto gosto de palavras e coisas antigas. No entanto, acabo por ter uma vida bastante simples – continuo a adorar filmes e videojogos, a coleccionar e vestir roupas neo-vitorianas e a passar demasiado tempo na Internet.
Quando é que decidiste tornar-te escritora? E como foi esse processo?
Ainda não me vejo como “escritora”. A escrita sempre foi o meu ponto forte a nível académico, e cresci a utilizá-la como uma forma de me entreter, mas nunca imaginei que um dia teria um livro meu publicado. Comecei a escrever Eterna Saudade como uma brincadeira para mim e para os meus amigos – escrevi o primeiro rascunho em cerca de 45 dias, e todos os dias enviava o que tinha escrito aos meus amigos, para eles darem uma espreitadela. Quando terminei, um desses meus amigos convenceu-me a tentar que a história fosse publicada, e eu avancei com a ideia sem nunca verdadeiramente imaginar que esta chegaria onde chegou.
Visto ter encontrado imensa informação na Internet e, no ponto em que estava, ainda ver a situação como uma “brincadeira”, decidi enveredar pelo método tradicional de edição. Atenção que, exceptuando os comuns AgentQuery.com e Absolute Write, eu não sabia nada sobre como funciona e se processa a edição de um livro. Penso que enviei, no total, qualquer coisa como dezassete cartas a agentes, e assinei com um deles cerca de seis semanas mais tarde. Depois disso, veio um ano de revisões antes de o contrato estar seguro.
Ainda estou a aprender e ainda me sinto uma novata. Em alguns aspectos sinto-me culpada, como se tivesse avançado à frente na fila. Existem tantos excelentes escritores que escrevem há anos e que continuam à procura de um agente! Mas estou extremamente agradecida pelas oportunidades que tive até então.
Porquê escrever uma história sobre zombies? E porquê misturá-los com uma sociedade futurista baseada na Era Vitoriana?
Embora tenha sido habituada, pela minha mãe, a ver filmes de terror, houve um aspecto que nos diferenciou – enquanto ela receava os monstros no ecrã, eu sempre simpatizei com eles! De alguma forma, mesmo sendo pequena, nunca senti nada a não ser empatia pelas criaturas que todas as outras pessoas detestavam. Quando vi, pela primeira vez, A Bela e o Monstro, só me apetecia gritar: “TRANSFORMA-TE OUTRA VEZ!” Tenho um ódio profundo aos príncipes bonitos e tendo a ver os monstros como sendo muito mais nobres, muito mais interessantes. Por isso, sabia que queria que a minha história se desenvolvesse em torno desses monstros, e decidi optar pelos zombies porque são fascinantes e têm uma história muito rica. Mais do que isso, eles são monstros terrivelmente humanos – eles são nós. Existe algo muito emotivo nisso, algo muito comovedor.
Quanto a misturar isso com uma sociedade futurista Vitoriana, bem... apenas pensei que seria divertido! A sério, essa é a única razão pela qual eu faço algo. Sou muito preguiçosa.
Um dos aspectos que mais gostei em Eterna Saudade foi o incrivelmente vibrante e excitante mundo steampunk/cyber-Vitoriano. E tudo o que conseguia pensar era o quão divertido seria viver nele. Assim, a minha pergunta é: como é que a ideia para este livro surgiu e como é que juntaste todas as suas vertentes?
Cheguei à ideia relativamente rápido, contudo, dar-lhe forma levou muito mais tempo e múltiplas revisões. Adoro a história Vitoriana e adoro a filosofia e estética do Steampunk, mas eu queria levar o meu livro numa direcção mais futurista. Maioritariamente, queria ver quão bem conseguiria recriar a história Vitoriana no futuro, explorar as intercessões da recriação histórica com um avanço extremo da tecnologia, e utilizando as diferenças entre os Novos Vitorianos e os Punks como uma evidência entre classes, política e questões de “autenticidade”. A Era Vitoriana em si foi uma época tão vibrante em termos de progressos tecnológicos que, honestamente, todo este mundo soa-me bastante natural. Basicamente, de cada vez que pensava sobre como é que os NV fariam algo, perguntava a mim mesma como é que eu idealmente faria se vivesse num mundo assim. Adoro vestidos de gala, adoro Playstation – quem diz que não conjugam? Os NV tornam isso possível.
Enquanto lia Eterna Saudade, senti que o romance entre Nora e Bram foi deixado para segundo plano, com toda a guerra, manipulação e monstros desconhecidos a vaguear um pouco por todo o lado. Este aspecto foi algo que querias retratar ou simplesmente aconteceu ser dessa forma?
Definitivamente, não queria escrever somente “um romance”. Queria escrever um livro em que o romance tomasse parte, sem dúvida, mas eu não categorizaria a série Dearly como um romance acima de tudo – não me importo que outros a interpretem dessa forma! Pretendia que fosse semelhante à vida real e, na vida real, todos nós temos dúzias de coisas a acontecer ao mesmo tempo, dúzias de relações que nos moldam e não, unicamente, uma. Não queria que a Nora e o Bram tivessem uma atitude fechada para o resto do mundo, de modo a que ficassem tão embrenhados um no outro que ignorassem tudo o resto. Porque isso não é amor, é co-dependência.
Bram é uma personagem fascinante (a minha favorita) e conceder-lhe uma personalidade tão humana e racional dentro da sua própria monstruosidade é simplesmente brilhante e envolvente. Ele foi uma personagem difícil de escrever?
Não, o Bram é um dos mais fáceis de escrever – é muito mas fácil de entrar na personagem do que Nora. E penso que o seja por ser tão racional e paciente, e também porque as suas motivações são muito mais simples – ele só quer tomar conta de toda a gente, procurar a melhor solução para qualquer crise e manter a sua energia. Ele é incrivelmente adulto para a sua idade (mesmo num mundo onde imagino que todos os jovens sejam extremamente maduros devido às expectativas sociais), por isso penso que isso ajuda. Como adulta, o salto para entrar na sua mente jovem mas decididamente prudente é menor. Pessoalmente, adoro escrever o Bram porque o vejo como um contraste em relação aos bad boys que abundam nos romances paranormais que andam por aí. Com Bram, aqui está um rapaz que tem razões para se preocupar e, claro, por vezes ele mesmo vê-se sugado nessa direcção – mas depois segue em frente outra vez. Admiro realmente isso nele, e vejo-o como algo terrivelmente característico dos “zombies”. Os zombies não mentem como deveriam de o fazer. Eles continuam em frente.
Todos estes monstros principais – como a Chas, o Coalhouse, o Ren e por aí adiante –, em termos de personalidade, facilmente podem ser confundidos com pessoas vivas. Foi uma ideia que querias transmitir para que nós, leitores, nos sentíssemos mais próximos deles?
Penso que é muito importante que as personagens zombies tenham personalidades e histórias incríveis, sim – porque muito poucas pessoas vão olhar para eles e automaticamente tomar o seu partido, como aconteceria no caso de um vampiro giro ou de um rapaz fantasma. (Como os meus editores me dizem, “Nem toda a gente pensa como tu, Lia.”) Por isso eles têm de se “vender” a eles mesmos através de outros meios, sendo mostrando uma inteligência fenomenal, por serem carinhosos e generosos, ou por fazerem as pessoas rir. Eu mesma acho isso verdadeiramente inspirador, o facto de os leitores primeiramente adorarem estas personagens pelo que eles genuinamente são. Assim é que o mundo deveria de ser.
Houve alguma personagem mais difícil de desenvolver?
Tenho sempre grandes problemas com os “vilões” – não sei porquê, mas não são nada fáceis para mim. Por isso, provavelmente diria o Wolfe e o Averne embora, ocasionalmente, tenha tido problemas em compreender o Dr. Dearly também, porque ele é pai, é um homem morto, e ainda tem tanto para dar. O que faz com que seja um bocadinho complicado de deixar de parte.
Se tivesses de descrever Eterna Saudade usando somente três palavras, quais seriam?
Zombies, vestidos, armas.
O que é que nos podes contar sobre Dearly, Beloved?
Começa quase imediatamente no momento em que terminou o livro anterior, e algumas personagens mais secundárias de Eterna Saudade voltarão com papéis de destaque. Veremos também como é que a sociedade se está a adaptar ao fluxo crescente de mortos vivos. Haverá ainda um grupo de personagens novas, vivas e mortas, e penso que este é um pouco mais sombrio que o primeiro livro, mas será divertido na mesma!
Tens alguma rotina ou horário de escrita? E preferes escrever com música ou em silêncio total?
Quando estou a trabalhar no rascunho, tento escrever 3000 palavras por dia – leve isso uma ou dez horas. Escrevo em casa, porque não, não consigo lidar com distracções. Se necessário, até coloco tampões nos ouvidos! Escuto música enquanto estou a tomar notas ou a sonhar alto, e agrupo playlists gigantescas para vários livros ou mesmo diferentes personagens. Sou viciada em música.
A um nível mais pessoal, como é que é uma típica segunda-feira na vida de Lia Habel?
Segunda-feira começa um pouco hesitante, porque provavelmente não fui capaz de cumprir a rotina durante o fim de semana. Sou uma pessoa nocturna, por isso devo levantar-me por volta das dez horas, sendo cedo o suficiente para me gabar de me ter levantando durante “a manhã”, mas perto do meio dia para que não me sinta privada.
Primeiro, tomo uma caneca de café. Literalmente, uma caneca germânica. Depois segue-se o email, o Facebook e o Twitter, e dou uma espreitadela em alguns blogues e fóruns. Leio e descontraio imenso, raramente participo online. O que faz com que aprecie quando as pessoas me puxam para fora do esconderijo. Na verdade, sou bastante solitária e tímida.
Depois do almoço, e de algumas coisas de “adultos e da vida real” como pagar contas ou colocar coisas no correio, se estou a escrever então volto a isso. E é praticamente assim durante o resto do dia. Se estiver a editar, então podes imaginar uma determinada cena quebrada em várias partes de soluços e/ou fúria aos céus. (Editar é a fase que menos gosto.)
Passo as minhas noites a ler, a jogar ou de visita à minha mãe e, geralmente, a relaxar. Como te disse, sou extremamente desinteressante! (A não ser que me conheças num evento. Então provavelmente estarei viciada em açúcar e se conseguires seguir o que estou a dizer, de certeza que será bastante interessante.)
Qual é o teu herói ou heroína, de um romance, favorito de todos os tempos e porquê?
O Fantasma da Ópera. Penso que ele foi a primeira personagem que li (devia ter uns nove ou dez anos) em que simplesmente queria estar com ele. Apaixonei-me completamente por ele. Até hoje, não consegui entender o porquê de Christine ser tão idiota, até hoje abandonaria tudo para viver underground com ele. É a qualidade da sua alma, por baixo da porcaria do seu estado psicológico e de todas as coisas horríveis que fez, que continua a atrair-me. Ele é tão corajoso, subtil e envolvente enquanto personagem. É um génio, um artista, alguém que, absolutamente, mereceria um pouco de amor mas que foi repetidamente deitado abaixo pela sociedade. Ele é um dos poucos heróis românticos em que perdoo a sua melancolia, perseguição e uma filosofia cortejadora que basicamente induz “um Síndrome de Estocolmo nela e que nunca mais a largará”. Porque o pobre rapaz não tinha outras opções. E no final – boom. Redenção. Deixou-me à beira das lágrimas.
Como gostas de passar o teu tempo livre?
A ver filmes, a ler e a dar longos passeios. Não sou uma pessoa de festas, mas adoro ir a convenções, vestir-me para a ocasião, e conhecer novas pessoas. Também passo mais tempo do que devia a planear os meus vestidos vitorianos e a conjugá-los com acessórios, a comprar penas, etc. Basicamente, sou uma heroína de George Eliot com um iMac. Tenho tendência para estar perto de casa, mas adoraria ter mais oportunidades de viajar!
Podes dar alguns conselhos a jovens escritores que sonham um dia ser publicados?
Escreve o que queres escrever, e segue o teu instinto – nunca deixes ninguém dizer-te que as tuas ideias são estranhas, ou que não tens qualquer hipótese de ser publicado, ou que nem sequer te deverias de importar com isso. Parte-me o coração quando vejo escritores que estão num estado de limbo porque se encheram de dúvidas, seja em relação às suas habilidades ou ideias. Às vezes simplesmente precisas de te atirar de cabeça e divertires-te, porque nunca sabes o bom que pode advir disso.
Finalmente, gostarias de deixar uma mensagem aos teus leitores portugueses?
Muito obrigado por darem uma oportunidade ao meu livro – mal posso esperar por visitar Portugal, um dia!
Antes de terminar, quero deixar um muito obrigado à autora Lia Habel, assim como à Contraponto, que tornaram esta entrevista possível. Estou-lhes terrificamente agradecida. :)
2 comentários:
Oh pá, que fixe, o meu sonho de entrevistas é o George Martin e o Stephen Hunt :)
Gostei bastante da entrevista e tenho a mesma opinião sobre o Fantasma da Ópera, a Christine é muito burra...
Fiquei definitivamente mais curiosa para ler o Dearly, Departed :)
Então, ainda bem, Cláudia. :) Eu gostei imenso do conceito do livro, embora não me tenha dado muito bem com a protagonista, mas enfim. A Lia é fantástica e foi super acessível nas respostas à extensa entrevista que lhe fiz, e penso que está excelente na medida em que fala bastante do livro e das personagens.
Depois, se chegares a ler o livrito, quero saber o que achaste! :D
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