quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Eterna Saudade, Lia Habel



Título Original: Dearly, Departed
Autoria: Lia Habel
Editora: Contraponto
Nº. Páginas: 405
Tradução: Elsa T. S. Vieira


Sinopse:

No ano de 2195, em Nova Vitória (uma nação altamente tecnológica baseada na antiga era vitoriana), Nora Dearly está mais interessada na história militar e nos conflitos políticos do seu pais do que nos chás e bailes de debutantes. Contudo, após a morte dos seus pais, Nora fica à mercê da sua autoritária tia, uma mulher interesseira e esbanjadora que desperdiçou a fortuna familiar e agora pretende casar a sobrinha por dinheiro. Para Nora, nenhum destino poderia ser pior – até que sofre uma tentativa de sequestro por parte de um grupo de mortos-vivos.
Isto é apenas o início. Arrancada do seu mundo civilizado, vê-se subitamente numa nova realidade que partilha com zombies devoradores, misteriosas tropas vestidas de preto e «O Lázaro», um vírus fatal que ressuscita os mortos tornando o mundo num inferno.


Opinião:

Quando o nosso mundo é abalado, de tal forma, por uma perda capaz de nos sufocar, eternamente, num sofrimento perdido, encontrar uma comunidade cujo instinto primário é devorar-nos até ao osso pode não ser o protótipo ideal de recuperação e aceitação da nova realidade que nos rodeia. E, para grande infortúnio, talvez nem o indício de um romance escandalosamente imoral e impróprio seja o suficiente para levantar o espírito, dominar o medo e corajosamente partir em busca de uma igualdade para todos... até para os que já esgotaram a sua vida, e passeiam-se agora na inconformidade da morte.

Eterna Saudade faz parte daquele pequeno grupo de obras que, embora esteja direccionada para uma camada mais juvenil, tem a capacidade de agradar a um leque vasto e diversificado de leitores. Retratando uma história futurista e até algo apocalíptica, onde os zombies deixaram de ser fruto do imaginário do passado para se transformarem na ameaça real do futuro, esta é uma narrativa construída num enredo coeso, cuidadosamente edificado e, sem sombra de dúvida, excelentemente divinal no que diz respeito ao conceito e atmosfera que o adornam. Este último ponto é, para mim, o que torna este livro tão diferente e especial.

Tentar idealizar uma relação amorosa entre um humano e um morto-vivo pode ser uma imagem confusa e repugnante mas, para Bram e Nora, o amor é um sentimento ao qual não se podem dar ao luxo de sucumbir. Para ele, Nora é uma adolescente inigualável, filha daquele que considera um pai para si, e portadora de um dom que a converte num doce ainda mais suculento e apetitoso. Para ela, Bram é uma segurança – dentro do possível –, um pilar em que se apoiar e uma força vital para a sua sanidade mental. Um para o outro, Bram e Nora são o amor perfeito, o parceiro ideal que nunca poderão ter devido não às diferenças sociais de cada um, como seria de esperar, mas sim à essência física que os define – ela é humana... mas ele está morto –, só que um sem o outro, em contrapartida, nada poderá, alguma vez, voltar a ser o que era.
Para Pamela, Nora é a irmã que nunca teve e quando se depara com o seu súbito desaparecimento, a dor e a mágoa são dois sentimentos com os quais não consegue lidar, principalmente quando insistem que aproveite a publicidade para fazer um bom casamento. É que estar no fundo da hierarquia social não é fácil, mas quando o perigo invade as ruas dos Campos Elísios, só os mais fortes e destemidos conseguirão sobreviver e nunca ninguém imaginaria que Pamela recuperaria alguns lugares em direcção ao topo da cadeia «alimentar».

Os diversos POV’s são uma forma bastante interessante de expor a narrativa e, assim, de apelar ao leitor, uma vez que lhe permite não só ficar a conhecer bem as personagens e os ideais que as movem em torno dos seus objectivos como, também, o possibilita integrar-se no enredo, um aspecto fundamental quando estamos perante uma trama incomum e recheada de intervenientes importantes. Esta abordagem escolhida por Lia Habel serve ainda de ponto de viragem entre os vários acontecimentos que marcam a narrativa e que a autora vai intercalando com passagens mais lentas e curiosas e momentos de alta tensão, vividos pelas personagens.

Habel escreveu Eterna Saudade de forma simples e assertiva, com um tom ora divertido ora incrivelmente cruel e real mas sempre com diálogos atentos e cuidados. Contudo, numa perspectiva inteiramente pessoal, encontrei-me, por vezes, desiludida com algumas das opções criativas que a autora tomou. Por exemplo, muitos dos factos explicativos políticos e coloniais são apresentados ao leitor em modo conversa em detrimento de um pouco mais de acção e força física. Achei, igualmente, que a primeira parte da história sofre do mesmo tipo de comodismo e conforto, pontuando-se a si mesma de uma certa lentidão que, embora nem sempre depreciativa e desnecessária, teria sido melhor apreciada se também dotada de alguma actividade mais frenética e duvidosa. Contudo, tenho consciência de que Eterna Saudade tem uma continuação à vista e que, como tal, este primeiro livro seria mais explicativo e lento que os seguintes, ainda assim, foi um dos aspectos menos positivos que encontrei nesta obra.

Nora Dearly foi, também para mim, uma decepção. Esta é uma personagem que tem uma sede gigantesca por respostas mas que, infelizmente, não possui a maturidade ou força suficientes para aguentar as rédeas da história. Ela é egoísta e até individualista, colocando, por inúmeras vezes, os seus sentimentos para com Bram à frente da questão paterna que lhe surge como surpresa ou das dificuldades que tem em contactar com o mundo exterior. Em comparação, achei Pamela muito mais confiante e corajosa, principalmente aquando confrontada com o perigo imediato, em que nunca se privou de ajudar os que necessitavam do seu auxílio mesmo que isso pusesse em causa a sua própria segurança. Bram, no entanto, conseguiu ganhar o meu afecto e atenção e, como tal, distrair-me da «não ligação» que tive com a protagonista. Uma personagem – Bram – que me deixou louca de curiosidade e afeição, com uma personalidade atractiva, um intelecto impressionante e um modo de estar esperançoso e nada esperado vindo de alguém da sua espécie. Claramente, aquele que mais me tocou e marcou em toda a narrativa.

Em suma, Eterna Saudade é um livro que, só a criatividade da autora, fala por si. Habel criou uma sociedade que se rege pelos ideais de beleza da era vitoriana mas que tem acesso a uma tecnologia de ponta nunca antes vista. Esta conjugação brilhante de pormenores do passado e do futuro, deixa o leitor completamente viciado no mundo de Nova Vitória. E cada peça que ela junta, cada detalhe que elabora, é uma autêntica surpresa. Assim sendo, e mesmo não tendo gostado de tudo o que esta obra oferece, tenho curiosidade e vontade em ler a continuação. E é por essa razão que aconselho esta aposta forte da Contraponto, ou seja, pelo modo como, no seu conjunto, este pode ser um livro divertido e sério ao mesmo tempo, que aborda toda uma série de temáticas que, se nos movimentássemos entre zombies, poderiam bem ser reais. 


« — (...) Esteja à vontade para me chamar aquilo que sou... chame-me cadáver, chama-me morto, chama-me assassino, se quiser. Já matei pessoas em combate, admito-o. Mas não me chame aquilo que não sou. Não sou uma aberração, não sou um canibal e...
Ia acrescentar “Não sou um monstro”, mas nesse momento apercebi-me de que estava ofendido com uma rapariga cujo mundo acabava de ser virado de pernas para o ar.», pág. 115

«Dizem que são os mais aptos que sobrevivem, mas nós sabemos que na realidade são os mais bem armados. Seja com dentes ou armas, é a mesma coisa.», págs. 134/135

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